História, controvérsia e fundamentos técnicos do ciclo Otto
- jcarlosperuca
- 3 de jan. de 2024
- 4 min de leitura
Atualizado: 13 de ago.
1) Linha do tempo essencial
1862 — Alphonse Beau de Rochas (França): publica e registra um “mémoire” descrevendo, em termos teóricos, o princípio de um motor a quatro tempos com compressão prévia da mistura antes da ignição, listando condições para maior rendimento (maior compressão, maior velocidade, menor área de superfície etc.). Ele não construiu um motor funcional.
1867 — Exposição de Paris: Nikolaus August Otto apresenta um motor de combustão interna (do tipo “atmosférico”) e recebe grande reconhecimento, iniciando o caminho industrial que culminaria no motor a quatro tempos prático.
1876 — Motor a quatro tempos funcional de Otto: Otto e a Deutz produzem o primeiro motor prático e confiável no ciclo de quatro tempos (admissão, compressão, combustão/expansão, escape), que se populariza mundialmente; por isso o ciclo ficou conhecido como ciclo Otto.
1886 — Queda da patente de Otto na Alemanha: com a redescoberta do documento de Beau de Rochas (1862), a patente central de Otto é invalidada, abrindo o mercado para dezenas de fabricantes.
1879–1881 — Dois tempos: Sir Dugald Clerk patenteia um motor de dois tempos com compressão, estabelecendo a alternativa ao ciclo Otto de quatro tempos.

O que, afinal, foi a “controvérsia”?
Beau de Rochas antecipou o conceito (quatro tempos com compressão) e o justificou termodinamicamente; Otto foi quem construiu o primeiro motor viável e o levou à produção em massa. Quando o antigo registro francês veio à tona, a patente ampla de Otto caiu (1886). Desde então, consolidou-se um meio-termo histórico: o princípio teórico é associado a Beau de Rochas, enquanto o ciclo prático e a difusão industrial levam o nome de Otto.
2) O que é, tecnicamente, o ciclo Otto?
O ciclo Otto descreve o funcionamento idealizado de motores de ignição por faísca (SI). Em um cilindro com pistão, ocorrem quatro tempos por ciclo:
Admissão: pistão desce; válvula de admissão abre; entra mistura ar–combustível (nos GA modernos, carburador ou injeção; em motores aeronáuticos a gasolina, a mistura costuma ser preparada a montante dos cilindros).
Compressão: ambas as válvulas fechadas; pistão sobe comprimindo a mistura.
Combustão e expansão (potência): perto do PMS, a vela dispara; a pressão sobe e o pistão é empurrado para baixo, entregando trabalho ao virabrequim.
Escape: pistão sobe com a válvula de escape aberta, expulsando os gases queimados.
No diagrama p–V ideal, o ciclo tem duas compressões/expansões adiabáticas (1–2 e 3–4) e duas transformações isócoras (adição e rejeição de calor em volume constante). A eficiência térmica ideal depende principalmente da taxa de compressão (r) e do índice politrópico/adiabatico (γ) do gás:

Ou seja, quanto maior a compressão, maior o rendimento—até o limite imposto por detonação/knock e por materiais/temperaturas. (Resultado clássico de termodinâmica de motores; reforçado pelo “programa” conceitual de Beau de Rochas.)
Elementos-chave de projeto (mundo real)
Taxa de compressão: aumenta rendimento mas eleva tendência ao knock; nos motores aeronáuticos a pistão que usam gasolina de aviação (Avgas 100LL), taxas típicas ficam em ~7:1 a 9:1, variando por fabricante/modelo.
Formação da mistura e ignição: carburador vs. injeção; magnetos redundantes em motores aeronáuticos SI (faísca independente da bateria).
Arrefecimento: muitos motores aeronáuticos são arrefecidos a ar (cilindros em “boxer” expostos ao fluxo).
Geometria/tempos de válvulas: comando, “overlap”, variação de fase; influenciam torque, potência específica e eficiência.
3) Comparações e ciclos aparentados
Ciclo Diesel (CI) - Compression Ignition: ignição por compressão do ar (sem vela). Tipicamente maiores taxas de compressão, maior eficiência parcial em carga alta. Em aviação leve, motores Diesel/Jet-A (CI) ganharam espaço em nichos, mas o Otto SI (Spark Ignition - Ignição por Faísca) permanece amplamente utilizado em motores a gasolina/Avgas.
Ciclo Atkinson/Miller: variações de tempo efetivo de compressão (via comando/geom. especial) para aumentar eficiência, comuns em híbridos automotivos; menos frequentes em aviação a pistão convencional, mas conceitos influenciam estratégias modernas.
Dois tempos de Clerk: um ciclo por volta (potência a cada descida), maior densidade de potência, porém desafios de emissões/consumo; historicamente importantes e ainda usados em aplicações específicas.
4) Por que o ciclo “leva o nome de Otto” se Beau de Rochas descreveu primeiro?
Porque Otto construiu e industrializou o motor de quatro tempos, provando sua viabilidade prática (confiabilidade, eficiência, ruído reduzido). Em dez anos após 1876, mais de 30 mil motores do tipo “Otto” foram fabricados, difundindo a arquitetura e estabelecendo o padrão para a motorização leve. A “marca histórica” ficou associada ao realizador e à adoção em massa, ainda que o princípio teórico remonte a Beau de Rochas. Em 1886, porém, o escritório de patentes alemão invalidou o monopólio de Otto ao reconhecer o registro francês de 1862.
5) Relevância para a aviação (motores a pistão)
Nas aeronaves leves e em parte da aviação geral, motores SI de quatro tempos (ciclo Otto) seguem dominantes: arquitetura oposta horizontal (“boxer”), magnetos duplos e arrefecimento a ar são escolhas que equilibram simplicidade, confiabilidade e peso. O entendimento do ciclo—em especial mistura, avanço de ignição, taxa de compressão e gestão térmica—é central para performance, economia e longevidade do motor, além de temas operacionais como controle de mistura (EMI/LOP/ROP), temperaturas de CHT/EGT e prevenção de detonação.

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